MARTIN BRAUSEWETTER


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Martin Brausewetter:
Abordagens do neobarroco: fragmentos e palimpsestos


Jens Baumgarten
Historiador da Arte, Depto. de História da Arte - UNIFESP


A reapropriação do passado pode se apresentar de uma forma criativa ou de uma maneira que engessa uma tradição conservadora. O discurso transcultural está aberto para as duas possibilidades, como podemos perceber não apenas nas culturas efêmeras de Las Vegas e de Hollywood nos Estados Unidos, ou no Brasil com a sua encenação do colonial e neocolonial – possuindo ao mesmo tempo um carater democratizante. Paralelo à reapropriação, menos  enquanto encenação,  mas muito mais pelo seu movimento ou potencialidade anti-clássica, abre possibilidades artísticas para o efêmero e fragmentário e a sua construção de camadas e patamares interligados de uma forma complexa.
Gostaria de começar com uma introdução breve aos discursos do neobarroco transhistórico e transcultural. Nas suas obras sobre o neobarroco, a historiadora de cinema e da arte Angela Ndalianis compara a cultura midiática e de entretenimento dos séculos XX e XXI com o barroco histórico do século XVII. Neste contexto é importante compreender que não se trata apenas de uma comparação dos estilos, mas de uma abordagem ANNÄHERUNG HERANGEHENSWEISE SICHTWEISE. THEORETISCHER, AUSGANGSPUNKT transhistórica e transcultural – que pode ser aplicada também na análise das obras de Martin Brausewetter. Em uma paráfrase de Focillon, ela define este barroco transhistórico e cultural, no qual a forma barroca demonstra dinâmica e constantemente a sua presença através dos séculos – às vezes com mais, às vezes com menos intensidade. Estas fases de erupções de intensidade são as mais interessantes e instigantes ESTIMULADOR. Neste contexto, dois conceitos são predominantemente vinculados com o conceito transcultural do neobarroco: o teatrum mundi e o gabinete de curiosidades (Wunderkammer). O interesse epistomológico no paradigma neobarroco conduz à reflexão para o aspecto da relevância e eficácia do conceito barroco, que post factum foi desenvolvido na segunda metade do século XIX – conceituado contra uma certa forma da “cultura alta”, e sobretudo experiência na cultura contemporânea de entretenimento, como uma re-aparência. Este barroco criou uma fascinação (Faszinosum) em um patamar STANDARD do discurso cultural bem como naquele da prática cultural. Uma hipótese, na qual Walter Moser se refere nas suas análises teóricas sobre o neobarroco, sugere que o barroco foi conceituado como eficácia retórica e estética (puissance). Este – também atualizado e em mídia diferente – foi usado nos diferentes  contextos, técnicos, políticos e sócio-econômicos. Estas abordagens servem para analisar as artes visuais inseridas na cultura moderna e contemporânea de entretenimento que permite compreender a realização do potencial, da eficácia, da estética barroca. Considerando o aspecto político desta abordagem de uma estética neobarroca, é possível compreendê-la como um “barroco democratizante” que nivela diferenças hierárquicas entre as culturas chamadas altas e as populares. Finalmente radicaliza a mobilidade transcultural em um paradigma globalizado. Assim, o neobarroco na sua transmidialização recicla o barroco, sua produção de eficácia e nos seus topoi para uma cultura de massa contemporânea. Teatrum mundi e gabinete de curiosidades eram relacionados a esta e por isso, contribuem para um debate teórico sobre realidade, virtualidade, simulacrum e espetáculo.
Nas suas análises da cultura de entretenimento e sua arquitetura de efeitos e estruturas similares  àqueles dos gabinetes de curiosidades do século XVI e XVII, Ndalianis demostra os paralelos do discurso e da prática entre o histórico e contemporâneo. Sobretudo no espaço interior, fragmentos diferentes do mundo inteiro evocam isso e participam da ilusão, e assim criam a fonte de uma imersão sensorial. Como no gabinete de curiosidades da primeira época moderna o macrocosmo é representado no microcosmo.
A experiência sensorial é por isso decisiva para a interpretação dos espaços neobarrocos com a sua tecnologia e – no sentido literal – milagres espetaculares; perspectivas múltiplas, eixos de olhar e experiências sensoriais multiplicam a experiência especial que Descartes se referiu no seu texto Discours de la Métode na sua definição do termo admiração. O espectador muda para um nível intelectual, quando ele avalia a sua experiência miraculosa, quase mística. Cada salto na observação visual leva a uma mudança ou um pulo da percepção sensorial do espectador – quando a posição do espectador é modificada em um processo contínuo de evocar outras experiências miraculosas alternadas. Este processo demonstra bem a virtuosidade do artista e do arquiteto na centralidade da performance do espectador.
As pinturas de Brausewetter podem ser vistas nos moldes de um neobarroco transhistórico e transcultural. Ele pratica nas suas pinturas uma arqueologia do próprio barroco e neobarroco. A questão não são referências estilísticas mas o trabalho com os fragementos, com o palimpsesto. As formas, as cores se revelam para o olhar a partir de várias perspectivas. A técnica de raspar a superfície escura se vincula ao seu aspecto lúdico e do consumidor. Como as imagens de brinquedos que devem ser reveladas através de uma raspagem ou as senhas de contas de bancos, Brausewetter descobre camadas de cores, linhas e formas. A obra se apresenta como inacabada, como processo. Assim a obra se junta ao processo da abordagem do neobarroco da continuação – da evocação do milagroso que combina a virtuosidade do artista com a performance do espectador. O palimpsesto significa o resto de uma antiga escritura que foi raspada para reutilizar o pergaminho para um novo texto. Nas pinturas de Brausewetter encontramos um palimpsesto invertido que descobre os traços mais fortes abaixo de uma camada de tinta escura.
As pinturas em preto e branco evocam esta eficácia (puissance) que Moser e Buci-Glucksmann mencionam. Elas iludem formas e oscilam entre o abstrato e o concreto, e assim constroem esta percepção de ambivalência que também constitui a obra do barroco histórico, bem como do neobarroco transhistórico. O aspecto central que essas pinturas aludem é o jogo com a própria ilusão. Não se trata aqui, evidentemente, de um trompe loeil no sentido tradicional, ou de uma alusão de tridemensionalidade na tradição de Pozzo ou da Escola Bolonhesa dos Carracci, mas na evocação de uma ilusão que se constrói no espectador e que o conduz no sentido de Descartes dependendo da perspectiva para novas experiências. Este efeito ser demonstra mais forte nas versões de grande tamanho. Um outro aspecto que uma abordagem neobarroca permite se constitui pela narração do ciclo. As pinturas em série funcionam como o comentário constante da obra. Elas se referem umas às outras – e ao mesmo momento elas se referem a si mesmas, questionando o estatuto da imagem. Com isso as pinturas oscilam não apenas entre abstrato e figurativo, mas também entre a idéia do conceito, da representação de um momento fixo, e o efêmero. Sobretudo o efêmero, outro conceito fundamental do barroco e neobarroco, permite uma abordagem para entender o processo criativo de Brausewetter e as grandes pinturas coloridas. O processo da raspagem, a demonstração do efêmero, o momento em processo constitui a diversidade e o fluxo das diferentes performances que se constroem como um processo inacabado ao espectador.
Essa arqueologia de uma forma neobarroca não se restringe à produção da pintura, mas demonstra resultados surpreendentes nas esculturas de pequeno e grande formato. Também fica visível a relação entre os desenhos e gravuras e estas esculturas que aludem também ao aspecto performático e assim, implicitamente o efêmero. Porém as pinturas e desenhos não devem ser mal interpretadas como esboços das obras tridimensionais, ou como preparo, ao contrário, elas fazem parte desta arqueologia visual que se inscreve numa abordagem neobarroca. Estas relações entre os diferentes gêneros e mídia enfatizam o aspecto das obras como multimidiático sem cair numa idéia de uma “obra total”. Essa diversidade midiática serve para focalizar o espectador, junto ao criador da obra, no centro da preocupação. Neste sentido, o processo criativo e também perceptivo é inacabado – porém as pinturas em preto e branco em nenhum momento se apresentam como uma interrupção arbitrária, mas nas suas formas e agrupamentos fragmentários, como comentários visuais autoreflexivos entre a obra e o espectador. O espectador se transforma – isso ficou evidente para mim na visita ao ateliê de Brausewetter – como passageiro em uma viagem, passando pelos vários fragmentos.
Mas à parte o fragmento, isso inclui o aspecto da reciclagem que pode ser compreendido como um dos traços cruciais do neobarroco. A idéia da reciclagem do neobarroco como Ndalianis e Moser definem distingue o neobarroco fundamentalmente de uma estética historicista que lê o reuso de um estilo histórico como evocar certas idéias vinculadas  LIGADOS a este estilo. Esta estética se restringe a uma repetição de um estilo para criar um pluralismo de estilos no final do século XIX, mas que se estende ao século XX. Porém, o neobarroco recicla não apenas os estilos mas deve ser compreendido como uma reciclagem e uma reapropriação das várias vertentes de um barroco histórico, em uma forma transhistórica e transcultural – superando restrições dos modelos de um modernismo padronizador. Brausewetter utiliza neste sentido, não por acaso, um material usado para suas esculturas, antigas cadeiras, mesas etc., são tratados e modificados para serem inseridos em um outro contexto visual. De novo percebemos uma dupla oscilação: primeiro, eles não perdem completamente a sua relação com o seu original, mas também não são reconhecíveis completamente; segundo, as esculturas aludem a objetos abstratos, e também a uma escultura arquitetônica que parece servir como estimuldador para um novo prédio, mas ao mesmo tempo, nunca perderam a sua aparência como móvel. Exatamente esta forma de criar uma tensão psíquica entre diferentes alusões – muitas vezes contrárias e opostas – permitem ao processo do neobarroco transhistórico. Mas Brausewetter vai além desta oscilação entre vertentes visuais diferentes, ele se serve das formas geométricas básicas nestes objetos, para subverter o rigor do modernismo na sua abordagem neobarroca – sem desclassificar ou denunciar a origem deste neobarroco no modernismo. Este aspecto também é importante de mencionar. O pensamento do neobarroco pode ser trazido a partir não apenas de autores como Omar Calabrese ou Christine Buci-Glucksmann, mas se refere ao autor e filósofo Walter Benjamin, que reavalia o modernismo a partir da sua leitura do barroco. Com esta base, que não pode ser aprofundada aqui, podemos ver as formas simples do modernismo rigoroso reinterpretado na obra de Brausewetter.
Para finalizar gostaria de chamar a atenção ao contexto no qual Brausewetter trabalha nos últimos anos: mudando constantemente, sobretudo, entre Viena e São Paulo. Duas cidades que possuem uma skyline própria e reonhecível – ou talvez uma skyline de São Paulo de uma megalópole que aparece num primeiro momento não distinguível. Não preciso explicar muito nitidamente a relação da cidade de Viena na sua arquitetura, nas suas representações visuais, com o barroco. A relação da cidade de São Paulo como uma cidade neobarroca parece menos evidente. Não falam todos os manuais que São Paulo, apesar da sua fundação na época colonial é uma cidade do modernismo – uma cidade que destrói a sua própria memória. Mas como mencionado acima, a rede ou a grade da cidade mantém a sua estrutura com as referências às origens. A cidade se apresenta como um grande palimpsesto, no qual os arquitetos modernistas tentaram rasgar a memória do passado para escrever a sua história. Porém os resíduos permanecem, eles transluzem, eles transparacem. A modernidade aparece em São Paulo também como um projeto inacabado. Assim, a meta-estrutura da cidade do modernismo por excelência pode ser lida como uma cidade neobarroca. Neste sentido as obras de Brausewetter que se referem à arquitetura podem ser analisadas como contribuintes no projeto de uma arqueologia neobarroca do próprio modernismo. As sobreposições dos prédios modernistas que seguem o rigor do ângulo reto ou da curva Niemeyeriana transformam-se em uma imagem de trompe loeil. Com certeza não podemos simplificar as pinturas em preto e branco como as esculturas em vistas representando esta cidade, mas compreender esta abordagem como arqueologia destes processos. As formas modernistas não são supérfluas, mas elas são inseridas num processo criativo e perceptivo transhistórico e transcultural do neobarroco.
 


Angela Ndalianis, "Neo-Baorque Entertainment Spaces and Experimental Design", In: Design as Rhetoric, ed. Gesche Joost und Arne Scheuermann, Basel: Birkhäuser Verlag, 2008, p. 1 e 5.

Walter Moser, "Du baroque européen et colonial au baroque américain et postcolonial", In: Barrocos y modernos. Nuevos caminos en la investigación del Barroco iberoamericano, ed. Petra Schumm, pp. 67-82.

Angela Ndalianis, op. cit., pp. 5-6.

Angela Ndalianis, op. cit., p. 7.